Pesa-me ser eu

Hoje tudo me pesa.
Pesa-me o corpo.
Pesa-me a alma.
Pesa-me a vida.
No fundo, pesa-me ser eu.

Vagueio por estas ruas fervilhadas de melancolia. Por aquilo que fui e já não sou. Ou que se calhar nunca cheguei a ser. Pesa-me o eu. Ou melhor, pesa-me o ser eu. Mas a que é que corresponde eu ser eu? Olho em redor e vejo inúmeros eus, mas nenhum deles sou eu. E embora esteja ciente desse facto, não sei, no entanto, a que é que corresponde eu ser eu. Só sei a que é que corresponde aquele eu não ser eu. Sei também que preferia não ser eu, mas sim, ao invés, ser um outro eu. Mas, pergunto-me, a que é que corresponderia eu deixar de ser eu e passar a ser outro eu? Aflijo-me por não encontrar respostas a estas perguntas. Ai, que dor ser eu! Esta angústia de viver aprisiona-me, fecha-me ao mundo, isola-me! Isola-me com um eu. Um eu que não sei a que corresponde.

Continuo a vaguear. Sinto os olhares a penetrarem-me a alma, porém, sem saberem para quem estão a olhar. Sou uma estranha neste mundo. Ninguém me conhece. Ninguém sabe quem sou eu. Alguns pensam saber quem sou eu, mas nem esses o sabem. Só eu posso saber quem sou eu, pois como poderia alguém, que não eu, dizer-me quem sou eu?

Os dias vão passando, com eles levam os meses e os anos. Aquilo que foi e já não volta a ser. Tudo muda disposicionalmente. Só ficam as marcas. Marcas que pesam. São a única coisa que nos dá a perceção de já termos passado por isto. De resto, não há mais nada. O passado foi com o vento. E o futuro dele virá. Resta-me o presente. Presente que me pesa. Que me prende. Que me cansa. Presente que não me deixa sair do presente. Porque tenho de viver no presente? Porque não posso voltar ao passado ou saltar para o futuro? O presente é tudo aquilo que eu não tenho.

Fecho os olhos. Escuto a alma. Apercebo-me de que há um cansaço em tudo o que faço. Que fardo!

O corpo puxa-me para o chão! Resisto! Mas sinto-me a oscilar. Que angústia! Que peso! Que fardo! A alma tenta aguentar o peso do corpo! Agarra-o! Puxa-o! Ouve-se um grito: “Eu não quero ser eu! Deixem-me ser um outro eu que não eu!”. Se eu não for eu, não tenho de aguentar com o meu eu. Mas como posso não ser eu se não sei a que é que corresponde eu ser eu?

“Serei, pois, sobre isso tudo um enigma para mim mesmo?” – Santo Agostinho

Filipa Fidalgo, 07 de junho de 2017

Sou estrela ébria que perdeu os céus, Sereia louca que deixou o mar; Sou templo prestes a ruir sem deus, Estátua falsa ainda erguida ao ar...

‘Dispersão', Mário de Sá-Carneiro