Vivemos num mundo em que muitos veem a cidade como fonte de riqueza, tanto a nível material como intelectual. Devido ao progresso técnico, financeiro e industrial, guiados pela ciência e pela tecnologia, consideramos que é nas cidades que podemos melhorar-nos enquanto seres humanos e, dessa forma, alcançar a felicidade. Vivemos numa constante ansiedade de viver apinhados de tecnologia, modernismo, luxo e erudição. Estamos numa era em que só a cidade poderá fornecer à comunidade todo o neologismo e meios técnicos como forma de atingir o bem-estar.
Será, no entanto, toda esta comodidade e opulência que nos trará felicidade?
A cidade e todos os seus vastos órgãos a funcionar, atraem-nos de uma forma quase impercetível. Sem dar por isso, deparamo-nos com sentimentos de uma ambição e ganância desenfreadas, descurando a nossa integridade, colocando os nossos interesses acima de todos os outros. “O meu bem-estar, sobrepor-se-á ao teu bem-estar. Ora, e se o teu bem-estar se sobrepuser ao meu ou o estiver a limitar, ver-te-ei como uma ameaça, fazendo os possíveis para que fiques na miséria, em vez de utilizar essas energias para melhorar a minha situação precária.”. Assim se demonstra o pensamento do homem citadino. Por outras palavras, deteriora-se a condição do homem. Somos corrompidos. Esquecemo-nos que é nas cidades que tudo começa a ruir: corrupção, roubos, branqueamento de capitais, dissimulação, hipocrisia, entre outras coisas. Para não falar da excessiva pobreza que muitos tentam fazer com que fique latente, não lhe dando a devida relevância. A cidade não passa disso: enquanto uns tentam constantemente saciar a sua sede de abundância e ganância, outros vivem na sua sombra, acorrentados pela miséria que os envolve e que não lhes dá a oportunidade de se poderem rebelar. Assim me pergunto: como distinguir a aparência da realidade? Será a aparência mais rica que a realidade?
Com a cidade veio a degradação da vida, a miséria, o desprezo das elites pelo sofrimento alheio, neste caso, pela plebe, que vive na penúria. Onde está o equilíbrio? Porque é que uns hão de viver abastadamente, enquanto que outros sofrem por nada ter? Será isto justo?
Pois bem, para que se equilibre um pouco mais as coisas, saliento ainda que não é apenas o povo que sofre com os males da cidade, pois a própria mediocracia também os acarreta. Essa degradação da cidade atinge o homem na sua generalidade, embora de maneiras diferentes. Quem havemos nós de culpabilizar? A cidade ou o homem? A cidade corrompe o homem ou será o homem que se corrompe a si próprio? A própria humanidade tem se vindo a destruir através do desenvolvimento da ciência e da tecnologia das cidades, porém, não os devemos culpabilizar em si, pois quem não os utiliza em proveito do bem somos nós, os humanos, que deixamos que a cobiça de poder se apodere e nos leve para a perversidade. Deixamo-nos sorver pelos bens materiais e por tudo aquilo a que eles nos impõem, tornando-nos corruptos e fazendo barbaridades impensáveis aos homens de bem. O consumo, nas cidades, é um vício, assim que o experimentamos não conseguimos viver sem ele, tornamo-nos escravos e dependentes como forma de camuflar o vazio que sentimos da nossa existência. Já dizia Zé Fernandes, em «A Cidade e as Serras»: “…o Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria.”. De que interessa a riqueza material quando esta está em falta espiritualmente? Quando todos os valores morais se degeneram, desumanizando o homem?
Isto sim, é a verdadeira cidade em que “O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no pecado.”.
De que nos serve todas estas riquezas e intelectualidades? A inteligência traz felicidade? A tal inteligência proveniente das cidades não passa de algo aparente e perfunctório. Estamos como que presos numa homogeneidade, embora pensemos que somos livres.
A liberdade é uma ilusão? O que nos torna mais livres? O que há de mau na liberdade? Penso que, embora haja liberdade, esta não esteja a ser utilizada corretamente pelo Homem. Isto porque o Homem acaba por se aprisionar a si mesmo ao querer fazer parte da sociedade que o envolve. Acaba por haver uma certa perda da própria identidade por parte deste para que se possa sentir integrado na comunidade. Ora, uma pessoa para ser livre precisa de saber usufruir dessa liberdade, descurando, por exemplo, das modas, das tradições, etc. Portanto, tem de haver uma recusa do “ser igual” e tentar sair dessa uniformidade, pois tal como dizia o poeta José Régio no «Cântico Negro»:” Não sei para onde vou” / “Sei que não vou por aí!”. É necessário que comece a haver um certo inconformismo quanto aos preceitos das sociedades. Até porque o homem acaba por ser absorvido por esses padrões que a caracterizam, tentando ser aquilo que não é, transformando-se em superficial e hipócrita que tudo faz para nela ser incluída.
“Cidade, esta criança tão antinatural … o homem parece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião… E aqui tem o belo Jacinto, o que é a bela Cidade!” . – «A Cidade e as Serras»
Perguntam-me: se a inteligência não traz felicidade, será a ignorância que a traz? Como é óbvio, não consigo responder a essa questão. Todavia, a verdade é que, às vezes, para sermos felizes, precisamos de ter alguma inconsciência das coisas, de parar de pensar e usufruir somente do decorrer da vida, deixar-nos perder na contemplação desta e, através dos sentidos, apreender tudo o que ela tem para nos oferecer, pois nem sempre inteligência é sinónimo de felicidade. Quanto mais instruídos e cultos somos, mais nos apercebemos que não sabemos nada sobre nós, nem sobre o que nos rodeia, deixando-nos dominar por uma certa frustração que provém do facto de não conseguirmos encontrar razões para a nossa existência. É nesta tensão que, normalmente, as pessoas eruditas vivem, tal como demonstra o poema d’ «A dor de pensar» de Fernando Pessoa: “És feliz porque és assim,” / “Todo o nada que és é teu.” / “Eu vejo-me e estou sem mim,” / “Conheço-me e não sou eu.”.
Filipa Fidalgo, 7 de janeiro de 2017